quinta-feira, 9 de junho de 2011

Religiões de Matriz Africana XII

No meu entender, uma forte manifestação da entidade religiosa na vida do indivíduo, quase sempre ocorre no contexto de um ritual religioso, em pessoas que têm algum tipo de vinculo negativo ou positivo com comunidades religiosas de matriz africana. Algumas vezes, o “ato de bolar” decorre seja de um apelo emocional diante da beleza do espetáculo religioso, seja por uma atenção especial as orientações e revelações feitas pelas entidades do terreiro, seja ainda pelas revelações apresentadas na consulta ao oráculo da religião. De uma forma ou de outra, a pessoa que costuma cair estatelada no chão já sente algum tipo de apelo interior da religião. Outros motivos de ordem sociológica e biopsicológicas poderiam ainda ser acrescentados a esse tipo de manifestação, mas, por ora, esses são os escolhidos para nos introduzir nos rituais de iniciação nas religiões de matriz africana.
      
4- Outras formas de adesão à religião de matriz africana

A tradição religiosa judaico-cristã, antes dos neopentecostais, primava por um tipo de religiosidade mais contemplativa, sem grandes manifestações aparentes. Na Igreja Católica, por exemplo, o transe místico sempre fora reprimido. Um caso clássico de repressão ao transe, refere-se à história de Santa Teresa de Ávila, que tinha grandes arroubos espirituais. O transe ou possessão quase sempre foi tomado pela tradição judaico-cristã como alucinação ou possessão diabólica. Em razão disso, desenvolveu-se um tipo de religiosidade, em que as pessoas têm dificuldades em aceitar o transe religioso como fundamento de uma religião.
No entanto, vale ressaltar que há outras maneiras menos dramáticas de iniciação de uma pessoa nas religiões de matriz africana. Por decisão pessoal, alguém pode manifestar o desejo de participar e ser iniciada nos rituais religiosos, mesmo não sendo possuído por uma entidade religiosa. Além disso,  entidades de pessoas que ocupam cargos sacerdotais podem convidar alguém da assistência, de certa maneira alguém amigo/a da casa, para assumir algum tipo de papel no ritual religioso. O Jogo de Búzios ou a Peneira de Ifá também pode revelar a vontade dos orixás, inquices ou voduns em ter determinada pessoa ocupando funções em uma comunidade religiosa. Nesses casos, existem diferentes processos de iniciação.
Em todos os casos, a iniciação se dará através de rituais que vão desde a lavagem das contas, passando pelo Bori (dar comida à cabeça) e pelos banhos de ervas, seguindo com a sacralizações de animais de duas e quatro patas, com reclusão e aprendizagem dos códigos litúrgicos e procedimentos comunitários.  A maior parte dos rituais de iniciação é de ordem privada, são realizados na presença de alguns membros da comunidade que já foram submetidos aos mesmos e têm firmeza e maturidade religiosa para ajudar nos atos. Nas religiões de matriz africana, apenas uma pequena parte dos rituais de iniciação é aberta ao público que não tem um vínculo ritualístico com a comunidade. Trata-se da festa do nome do santo e da entronização de Ogãs e equedes, kissicaramgomo e makotas, cargos sacerdotais importantes na hierarquia dos terreiros. Até o momento de apresentação pública, a pessoa iniciada terá passado por um período que vai de sete a trinta dias de reclusão ritual. Nesse tempo, terá aprendido cantos, rezas, danças e narrativas sobre as vivências religiosas dos/as mais velhos/as . Todo esse sacrifício tem como principal objetivo um tipo de vínculo e o aprimoramento da relação pessoal com uma entidade religiosa. 
            Fora dos rituais de iniciação, as religiões de matriz africana têm outros rituais em que se repetem acontecimentos narrados em mitos, como os rituais das Águas de Oxalá, realiza-se também um banquete para a família de um Orixá, como o Olubajé de Obaluaiye. Basicamente, em todos os rituais públicos, há comida e bebida farta para ser compartilhada com a assistência. Em quase toda a Bahia, as comidas oferecidas são iguarias da culinária afro-brasileira, como acarajé, amalá, caruru, vatapá, xinxim de galinha, acaçá, arroz de haussá, etc.
            Tudo isso ocorre em clima de festa comunitária e de confraternização que se inicia desde o anúncio do ritual, através da colaboração financeira dos membros que podem contribuir, e vai até a preparação comunitária dos alimentos que serão servidos ao altar das entidades religiosas e ao povo que vem participar da festa.
            A festa não é apenas uma das características principais das religiões de matriz africana, mas também um dos seus fundamentos. Ao som da música, ao retumbar dos tambores, no ritmo da percussão, as pessoas cantam e dançam para invocar a proteção e reverenciar as entidades religiosas. É esse um dos momentos em que a relação entre o indivíduo e sua entidade torna-se mais forte, produzindo, assim, benefícios na ordem dos compreensão contribui para que o/a estudante negro/a, e, também não-negro/a, adepto/a das religiões de matriz africana, possa ver sua religião ser abordada na escola como uma referência identitária positiva. Retomo enfrentamentos cotidianos, que são múltiplos e diversificados. Esses enfrentamentos envolvem desde os conflitos de classes, raça e gênero, passando pela afirmação de identidade, desembocam nas atitudes de intolerância e preconceitos, e vão até a luta diária pela sobrevivência. No contexto dos rituais, a festa simboliza a culminância do principal objetivo que se pretende alcançar nas religiões de matriz africana. Trata-se de uma vida boa, com saúde, prosperidade e felicidade.

5- Considerações finais

            O conhecimento dos fundamentos religiosos como códigos sócio-culturais e parte das referências identitárias dos afrodescendentes, possibilita a compreensão de que não há nem um absurdo nas religiões de matriz africana no Brasil. Em verdade, o que existe mesmo na sociedade brasileira, e de sobra, é eurocentrismo e etnocentrismo. É aí que se produz um entendimento de que a religião certa é aquela que os europeus nos trouxeram, cuja matriz é judaico-cristã. As outras religiões, não são propriamente religiões, mas seitas, expressões de religiosidade, crendices, magias e superstições. Para esse tipo de entendimento, a única religião que tem uma mensagem boa para vida é o cristianismo, porque promete a vida eterna.
No entanto, para as religiões de matriz africana, de certa maneira, a eternidade da vida começa aqui, vivendo feliz, junto das pessoas de quem se gosta. Não se contesta a plenitude de uma vida após a morte, mas também não há uma preocupação em alcança-la. O que o adepto consciente das religiões de matriz africana espera depois da sua morte é, por um lado, ser digno dos ritos fúnebres, merecidos em virtude do seu processo de iniciação, por outro lado, ser celebrado pela sua firmeza e seu compromisso com a tradição e com os fundamentos presentes nessa forma de sociabilidade.  
            Compreender os fundamentos das religiões de matriz africana como códigos sócio-culturais e educativos, referentes a uma outra forma de sociabilidade, pode ser um dos caminhos para afastar atitudes como a indiferença, a intolerância e o preconceito na educação escolar. Essa perspectiva de, assim, um dos aspectos do primeiro pressuposto deste trabalho: o de que a escola é um espaço e tempo de afirmação de identidade. Certamente, isso exige um esforço muito grande de educadores/as deste nosso País, com relação à mudança de mentalidade e práticas educativas.
            Para finalizar, ressalto que as questões relacionadas à aceitação e legitimidade das religiões de matriz africana podem também ser pensadas pelo não reconhecimento de que Deus, o Ser Supremo, O Eterno, tem outras maneiras de se fazer presente no meio da humanidade. Os orixás, os inquices, os vondus e os ancestrais constituem-se outras palavras de Deus na história da humanidade. 


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